Manifestação, Representatividade e Crucificação na Parada Gay 2015: Jesus Sorriu


10 Sabendo que fora por inveja que os chefes dos sacerdotes lhe haviam entregado Jesus.
11 Mas os chefes dos sacerdotes incitaram a multidão a pedir que Pilatos, ao contrário, soltasse Barrabás.
12 "Então, que farei com aquele a quem vocês chamam rei dos judeus?", perguntou-lhes Pilatos.
13 "Crucifica-o!", gritaram eles.
14 "Por quê? Que crime ele cometeu?", perguntou Pilatos. Mas eles gritavam ainda mais: "Crucifica-o!"



Manifestação artística de Viviany Beleboni | Foto: Reprodução/Facebook
Texto: Yule Travalon | Da Fruta Que Você Gosta
Revisão: Pedro Maia | Pensamentos Compulsivos

Nesse último domingo (7 de junho de 2015), ocorreu a 19ª edição da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo. Com o tema “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: respeite-me”, a Parada reuniu milhares de pessoas na Avenida Paulista. Vários portais de notícias divulgaram fotos e entrevistas dos que estiveram presentes no evento, mas uma manifestação artística em especial tomou conta da timeline do facebook hoje (8 de junho). Todos estão falando da manifestação artística de uma mulher crucificada com os dizeres “BASTA HOMOFOBIA GLBT”.

As críticas que provém de pastores e seus seguidores seguem a linha: “estão usando o meu Jesus”, “isso é blasfêmia”, “cristofobia”, “isso é uma ofensa, ultraje”! A mulher crucificada chocou, não foi? Então tenho uma novidade para vocês: era para chocar mesmo. Protesto não se faz com camisa de seleção, selfie ou levando a babá para cuidar dos filhos no meio da multidão. Protesto é sobre indignação, sobre insatisfação, sobre ter um grito preso na garganta e precisar externá-lo.

Não se faz protesto sem chocar.

Crucificação, Jesus & o Poder Simbólico


A crucificação era um método que reunia tortura e execução, utilizado na antiguidade na Pérsia, Cartago, Roma. Uma rápida olhada na Wikipédia sobre o assunto, vemos o processo da crucificação: o criminoso era despido de suas vestes, seguia-se o flagelo, pregos nos punhos e nos pés, açoitamento, humilhação. Depois a cruz – onde o indivíduo havia sido pregado – era apenas erguida e o peso do corpo da pessoa fazia o restante do trabalho. Horrendo, né?

Para os romanos, morrer na cruz era uma grande humilhação, os romanos tinham horror àquilo. Afinal de contas, quem morria na cruz? O mercador? O centurião? O prefeito do pretório? Um médico? Não. Apenas bandidos, criminosos, revolucionários políticos, ou seja, os subversivos.

Os relatos bíblicos sobre a morte de Jesus mostram quanta dor aquele homem-divino sofreu. Dor, humilhação e sofrimento que foram suportados, segundo os relatos, para morrer por todos. Mas eu tenho algumas novidades para vocês: o relato de Jesus, apenas ilustra como era a crucificação. Os criminosos que morreram ao lado dele, morreram da mesma forma, assim como todos os outros que vieram antes e depois de sua crucificação. Entretanto, apenas a crucificação do Cristo histórico comoveu. Ainda que para Roma, Jesus tenha morrido como criminoso e subversivo político, ou seja, contra as leis da maioria. Mas para um grupo em específico (seus seguidores), que viram seu mestre em meio a centenas de homens crucificados, apenas tiveram olhos para um. 

Por que aquilo foi chocante e perturbador, afinal, ver o seu mestre ser humilhado e torturado gerou indignação e descontentamento. Mas esses discípulos Ignoraram centenas de homens morrendo naquele dia, ao lado de seu mestre, para olhar para apenas um dos homens subversivos. Posteriormente, tomaram o símbolo da cruz como grande símbolo de seu ideal que até certo momento era subversivo, ou seja, contra as posturas de Roma. Isso, é claro, até que o cristianismo se tornasse situação em Roma.

O que quero dizer é: Jesus morreu na cruz. Assim como centenas de outros bandidos, criminosos e revolucionários (subversivos a ordem vigente). A cruz é um símbolo. Um símbolo sobre ser despido de quem é, ser humilhado, torturado e deixado ao léu para morrer, para aprender e servir de lição aos demais, e expor que a ordem social deve ser mantida.

Afinal, quem é o bandido, o criminoso e o revolucionário? O subversivo. Aquele que “não está pronto para viver na sociedade”, “aquele que infringe as regras impostas na sociedade”, “aquele que está insatisfeito com sua posição dentro da sociedade”. Sinto dizer a vocês, mas Jesus era assim. Ele estava insatisfeito. Ou o relato de João 2:13 em diante, não lhe diz nada? Jesus fez um chicote e desceu o cacete na galera que estava vendendo coisas no templo de Jerusalém. Por que não se indignam hoje com as palavras “Parai de fazer da casa de meu pai um mercado” (João 2:16)?

Não foi o mesmo Jesus que andou entre leprosos, prostitutas e cobradores de impostos e falava de perdão, amor e compaixão ao invés de destruição, morte e condenação?

O poder simbólico da crucificação carrega a ideia de: morrer por ser subversivo. Morrer por não se adequar pelo que é imposto na sociedade. Morrer/ser mártir de um ideal. Estou dizendo que bandidos e criminosos devam virar mártir? Não. Mas o próprio Jesus morreu como um criminoso e se tornou mártir em sua época. Hoje, os tempos são diferentes. Não são apenas os criminosos, bandidos e revolucionários que são subversivos.


Subversão, Manifestação e Eu Sorri


21 séculos após o nascimento de Jesus, numa terra chamada Brasil, existem outros protagonistas sociais que são subversivos. Numa sociedade que pagou para o branco europeu vir colonizar, o negro escravo que hoje é livre e pode ocupar cargos altos, é um perigo. Numa sociedade patriarcal e machista onde o homem é o cabeça e chefe de todas as coisas, uma mulher independente é mais que um perigo. Numa sociedade heteronormativa que dita as regras de como o homem deve ser, como deve se portar, com quem deve se relacionar e no que acreditar, um gay, uma travesti ou uma transexual, uma lésbica, é muito, mas muito mais que um perigo.

Novamente recorramos à Wikipédia e vejamos o que ela fala de subversão: “é um tipo de oposição sutil e prolongada”. Oposição a quê? A quem as pessoas vistas e chamadas de subversivas se opõe? À fé cristã? Jamais. A fé pertence a cada um e cada um precisa ter direito e dever de exercê-la livremente. Entretanto, esse direito e dever não pode se encaixar em controlar outras vidas em nome da sua fé. Aquilo que você acredita pertence a você e você deve viver em perfeito amor e harmonia. Mas obrigar o outro a agir dentro dos parâmetros da sua fé é sair do perfeito amor e perfeita harmonia com isso.

Em um país, que reza a lenda que é laico, colonizado por cristãos, fundado por cristãos, estruturado por cristãos e com crucifixos em locais públicos, pode ser difícil entender essa oposição, subversão, ou como prefiro chamar manifestação artística feita pela mulher Viviany em uma Parada de Orgulho LGBT.

Quando olhei para a foto hoje pela tarde, sorri. Um sorriso de quem pensa: é isso! A mensagem de Viviany não é como a mensagem de Jesus, que era direta, objetiva e concisa: amar o próximo como a ti mesmo, saber perdoar, ter compaixão. Afinal, no mundo Romano completamente belicoso e em guerra, o que era mais subversivo do que a paz? Dizer que a paz era o caminho certo, o amor pelo próximo era o ideal para que todos pudessem viver bem? Então foi por isso que eu sorri, por que a manifestação de Viviany é um grito de paz, amor e compaixão, transcrito como “basta homofobia glbt”, que se você for reparar bem, quando morrem – e eles morrem todos os dias –, morrem como criminosos. Não há compaixão, não há amor, não há paz. Morrem como escória, morrem como lixo, morrem do teu lado na rua e você sequer se indigna de fechar os olhos do cadáver. Não. Você passa direto, finge que não vê, ignora. Isso, é claro, quando não tenta silenciar o grito de Viviany e diz que ela está blasfemando.

Blasfemando contra o quê? Não foi Jesus quem morreu na cruz ao lado de centenas de outros homens, também chamados e vistos como bandidos e criminosos? Jesus, diferente dos demais, teve a oportunidade de após a morte, ter recebido honras e ser sepultado e lembrado. Mas quem dentre vós se lembra dos homossexuais brutalmente assassinados no Brasil ano passado e este ano? Fui dar uma googleada e não me apareceu nome de ninguém! N i n g u é m!

Como podem amar, lembrar e adorar um homem que morreu há 21 séculos e que é invisível, sendo que não podem amar, sentir compaixão e mostrar caridade pelos jovens que morrem em seu próprio país, tem corpo, nome e são deixados despidos na rua, após serem brutalmente humilhados, agredidos e assassinados? Não era sobre isso o que Jesus dizia? O que é amar o próximo como a ti mesmo, senão, compadecer, amar e saber aceitar o outro pelo que ele é?

Viviany, se você ler esse texto, saiba que quando vi sua manifestação, eu sorri.

Mas eu não sorri em deboche, não. Eu não sorri em achar engraçado, muito menos. Eu sorri porque pela primeira vez em dois anos, a sua manifestação artística me fez gritar de raiva e me deu forças para escrever esse texto. Eu me calei tantas vezes quando vi injustiças, porque não tinha mais forças para lutar, não tinha mais forças para debater, porque quando você diz: respeite, por favor, você escuta em resposta: “Deus vai te matar! Deus vai te destruir! Você está condenado a punição”! Então, numa tarde de segunda-feira, enquanto descia a timeline do facebook impacientemente, eu sorri. Por que sua foto está em todos os lugares possíveis!!! Sua manifestação é uma reflexão que vai além do que eu poderia escrever e que você sintetizou em “basta homofobia glbt”, mas os alfabetizados do Brasil não conseguiram ler o texto exposto. Como poderiam entender uma mulher numa cruz numa parada gay?

Viviany, saiba que eu sorri.

Produto, Provocações e Invariantes do Discurso Político


Algumas manifestações que li em minha timeline não eram positivas ao ato de Viviany, alguns compartilharam textos e vídeos de pastores influentes em seu meio, que produziram discursos contra o ato da mulher crucificada na parada do orgulho LGBT. Algumas delas, já citei. Outras falavam coisas como: “não podem fazer isso com Jesus”, “como podem fazer isso com meu símbolo sagrado”?

Jesus não é um produto. Vocês não patentearam, ele não é uma marca, ele não é apenas um nome para colocar em perfumes, bíblias, folhetos, vassouras, terrenos no céu e vender. Ele é muito mais que isso. Ele é também um símbolo e um personagem histórico. Ele não morreu apenas por você que acredita nele e diz seguir seus ensinamentos, mesmo ignorando a parte do ‘amar ao próximo como a ti mesmo’. Jesus não morreu por todos? Então ele morreu inclusive por quem não acredita nele, ainda mais, por quem nasceu gay.

Quero provoca-los agora, com algo visceral. Levando em consideração que Jesus ia a todo lugar levar sua palavra e manifestar seu amor e apoio, tendo ele andando com leprosos, prostitutas e cobradores de impostos, é tão difícil imaginar que se ele estivesse vivo, não estaria na Parada gay, apoiando a causa? Ou ele estaria agora em redes sociais disseminando ódio gratuito, coisa que nunca fez?

O professor Ciro Flamarion Cardoso escreveu um texto (notas de aula) chamado Invariantes do Discurso Político, que inclusive, utilizo para meu trabalho monográfico em história. Cardoso coloca que os discursos políticos buscam quatro coisas: tornar transparente a realidade social, autolegitimar-se, pretensão em gerir o social e construir uma identidade coletiva. E eu vi isso nos discursos produzidos por Malafaia e Feliciano.

Ambos, em seus discursos, querem transparecer uma realidade social e manuseá-la ao seu favor: colocam Jesus como objeto que pertence a eles e apenas a eles. Criticam a manifestação de Viviany porque a realidade que eles querem transparecer para os que ouvirão/lerão seus discursos, deixa claro: ela [Viviany] quer zombar, blasfemar e fazer chacota com a imagem do Jesus que eles pregam – o que não é verdade.

Em segundo lugar, eles autolegitimam-se. Em um vídeo, Feliciano diz: “onde estão as autoridades cristãs? A autoridade da igreja batista, universal, assembleia de Deus, igreja católica, etc”? Como se apenas eles pudessem utilizar a figura de Jesus e falar de Jesus, ou seja, autolegitimam-se como portadores e donos dos direitos autorais dessa figura histórica do homem-divino.

Então, pretendem gerir o social: “denunciem! Espalhem! Mostrem que são contra isso”! Feliciano diz no vídeo e ainda propõe a forma correta de lidar com Jesus: a dele. Um Jesus que na visão dele, jamais aceitaria estar novamente entre as minorias, os subversivos, os criminosos sociais.

E por que não, criar uma identidade coletiva? “Se você é cristão, manifeste-se contra isso”, como se ser cristão significasse odiar as minorias e o diferente – que é, afinal, a imagem que é tão vinculada hoje em dia e nós sabemos que não é assim. Nem todo cristão é fundamentalista, intolerante e abusivo em suas palavras.

Enfim, o discurso político apresentado pelas autoridades cristãs pretendem sim transparecer uma realidade social [deles], autolegitimação de uso de marca, pretendem gerir o social dizendo às pessoas o que fazer e ainda forjam uma identidade coletiva que vai contra as próprias palavras de Jesus. Eu particularmente nunca vi esses e outros homens de Deus pregando o amor ao próximo, mas ouço-o eles falarem da punição, do inferno, do diabo, do pecado, da sodomia como se só houvesse isso em seu vocabulário. Isso é transparecer a realidade ou manipular a realidade e os fatos ao favor do seu discurso político? Uma lida em Cardoso ajudaria muito.

Crucifica-o!!!


A minha crença particular não me faz adorar a Jesus, mas eu vejo Jesus em muitos lugares. Por que pra mim – que tiro o ar religioso do homem-divino –, o vejo como subversivo, guerreiro, um homem que se opunha a um sistema firmemente, seja com suas palavras, com um chicote improvisado ou ao olhar para seus agressores e em vez de revidar, dizer: “pai, perdoai, eles não sabem o que fazem”.

Mas nessa ocasião, lembrei do evangelho de Marcos, no capítulo 15. Por ocasião da páscoa, um protagonista social subversivo (chamemos assim, para não chamar Jesus de criminoso e não ofender geral, né?), era liberado da prisão e crucificação e outro era condenado. Duas escolhas foram apresentadas: Barrabás e Jesus, o nazareno. Pilatos perguntou: Barrabás ou Jesus? A multidão, a maioria, o povo todo reunido (os que aceitavam as imposições da lei e se consideravam homens justos e dignos), gritou: Barrabás!!! Pilatos pigarreou, e perguntou: “Mas que crimes o Nazareno cometeu”? Ao que responderam: “Crucifica-o”!!!! E Pilatos deve ter, no mínimo, perguntado uma segunda vez: “Mas porque deveria eu executá-lo”? Ao que o povo, ignorando a pergunta, afinal, só queriam ver a chacina e não argumentar contra ou a favor de Barrabás, só tinha uma única palavra de ordem: “Crucifica-o”!!!

Imagino, em minha mente fértil, que Pilatos andou até Jesus, chegou bem na encolha no ouvido dele e disse: “Foi por esse povo que você se tornou subversivo? Foi para esse povo que você ensinou amor, compaixão e piedade”?

Sabe o que eu sinceramente acho que Jesus respondeu? Ele deve ter sorrido.

Pós-Script


Os cristãos costumam dizer que um dia, so far far away, Jesus Cristo, seu senhor e rei subversivo, irá retornar. Eu particularmente acredito que ele já retornou... E que já mataram ele de novo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

About Us

Recent

Random